Recusa de documentos migratórios por cartórios dificulta obtenção de certidão de nascimento
Veiculado originalmente em Folha de São Paulo, link aqui
Nascida no Rio de Janeiro em 21 de setembro deste ano, a brasileira Lia Sophia Ludeña Arciniegas passou dois meses sem existir de forma oficial. Os pais dela, os venezuelanos Melanie e Emmanuel, enfrentaram um périplo para registrar a filha e só conseguiram depois da intervenção de uma advogada.
Com a declaração de nascido vivo (DNV) do bebê emitida pelo hospital, o protocolo de registro temporário dos pais expedido pela Polícia Federal, além de outros documentos brasileiros e venezuelanos, o casal, que mora no Brasil há um ano, foi três vezes ao cartório. Mas a documentação deles, mesmo sendo oficial e estando dentro do prazo de validade, não foi aceita.
Melanie, 20, afirma que os registradores colocaram diversas barreiras. Primeiro, exigiram o RNM (registro nacional migratório), identidade definitiva que os imigrantes só recebem após um tempo no país. Depois, não aceitaram o sobrenome dos pais dela abreviado em uma das cédulas.
Segundo ela, chegaram a fazer um teste para ver se eles falavam português e pediram provas de que a criança “havia sido feita no Brasil”, não na Venezuela. “Queriam me interrogar, pediram provas de que eu não cheguei grávida ao país, mostrei até fotos”, afirma.
Sem a certidão de nascimento, Melanie não conseguiu levar a filha ao médico quando a criança teve um problema no umbigo. No posto de saúde, conta ela, não aceitaram atendê-la por não ter o registro.
A família voltou ao cartório, desta vez com Alexia Kilaris, advogada da ONG Mawon, que atende imigrantes. “Eles tinham documentos expedidos pela PF com foto, o futuro número do RNM, a validade em dia, um QR Code que permite verificar a autenticidade. Qualquer pessoa com boa vontade poderia ter registrado a criança, mas o cartório se negava”, diz Kilaris, que só saiu de lá após conseguir a certidão.
Diferentemente dos países que atribuem a nacionalidade por meio do jus sanguinis (do latim, direito de sangue, ou seja, pela ascendência), o Brasil adota o princípio do jus soli (direito de solo), pelo qual crianças nascidas no país ganham a nacionalidade brasileira. Está no artigo 12 da Constituição: são brasileiros “os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros”.
Apesar disso, entidades que auxiliam imigrantes e refugiados vêm recebendo muitos casais com dificuldades para registrar filhos nascidos no Brasil, um problema que piorou desde o início da pandemia, com o fechamento das fronteiras e a interrupção da expedição e renovação de documentos de estrangeiros pela PF. Em Roraima, a equipe do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), por exemplo, recebeu 49 casos do tipo entre março e agosto deste ano.
“A fronteira ficou fechada por mais de um ano. Muita gente entrou no país nesse período e não conseguiu se regularizar”, afirma Tomás Tancredi, oficial de proteção à criança e ao adolescente do órgão. “E mesmo os que estão regulares encontram barreiras, porque muitos não estão acostumados a alguns documentos, como o protocolo de solicitação de refúgio [o primeiro que o refugiado recebe, enquanto o caso é julgado].”
Ele acrescenta que houve também vários casos de crianças registradas apenas no nome da mãe, por não aceitarem os documentos do pai venezuelano. Segundo Tancredi, o Unicef tem conversado com cartórios de Roraima e elaborou documentos de orientação, além de avisar a Vara da Infância e da Juventude.
INVISÍVEIS
Cerca de 3 milhões de brasileiros não possuem registro civil de nascimento, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Não se sabe quantos deles são filhos de imigrantes.
De acordo com relatório divulgado neste mês pelo Observatório das Migrações Internacionais (ObMigra), entre 2011 e 2019 104.576 crianças filhas de mães estrangeiras nasceram no Brasil.
O número vem crescendo ano a ano, acompanhando o aumento da imigração para o país. Em 2019, as três nacionalidades mais comuns entre as mães eram venezuelana, boliviana e haitiana.
Em julho deste ano, a Defensoria Pública da União (DPU) enviou um pedido ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para que o órgão emita uma recomendação relacionada ao tema. Atualmente, as normas que regem as atividades dos cartórios são descentralizadas, o que dificulta a padronização.
O defensor público federal João Chaves especifica que a solicitação pede que a criança seja registrada independentemente da regularidade migratória dos pais e que documentos do país de origem possam ser aceitos. A DPU também insta o CNJ a fazer campanhas de orientação, para que cartórios ajudem a resolver casos mais complexos, como na falta de documentos com foto ou com o nome dos avós do bebê.
“Deve-se abrir um processo de investigação, com encaminhamento ao Conselho Tutelar, se necessário. Quando simplesmente mandam a família embora, muitas ficam com medo e desistem. Aí a criança fica invisível, e corremos o risco de subnotificação em massa.” Chaves lembra que o registro civil visa o interesse da criança, não dos pais. Sem a certidão, ela fica mais vulnerável a violações de direitos, pode ser vítima de tráfico humano e ter dificuldade para acessar os sistemas de saúde e de educação.
Gabriel Mattos, juiz auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça, reconhece o problema e afirma que o órgão está tomando providências. Acrescenta, ainda, que o CNJ está em contato com o Ministério da Justiça, a PF e associações de registradores para encontrar uma solução. Segundo ele, o rigor na exigência de documentos parte também da preocupação de evitar fraudes, tráfico de crianças e adoção irregular. “Mas jamais a criança pode ficar sem registro. Temos que ver como faremos, se será criado um mecanismo para identificar aqueles [pais] sem documentos, por exemplo. Estamos avaliando.”
O juiz cita a resolução 425 do CNJ, de outubro de 2021, que dispõe sobre o acesso ao Judiciário por pessoas em situação de rua, “mas pode ser aplicada, por analogia, a casos de filhos de estrangeiros nascidos no Brasil”. Um dos artigos trata da necessidade de desburocratização do registro civil, especificando que “a deficiência da identificação civil dos pais não obsta [cria obstáculo] a expedição da Declaração de Nascido Vivo (DNV) e o registro de nascimento da criança”.
PROTOCOLO DESCONHECIDO
Além de Melanie, a Folha entrevistou outras cinco famílias, de três estados diferentes. Entre elas, uma nigeriana e uma venezuelana que demoraram, cada uma, três meses para conseguir registrar seus bebês, uma boliviana que não tem, ela própria, certidão de nascimento e por isso não consegue registrar a filha de três anos e um refugiado da Guiné Conacri que teve um filho com uma brasileira no interior de SP.
Esse último é o atleta Ibrahima Camará, 17, que mora em Tatuí (SP) e apresentou o CPF e o protocolo de refúgio para registrar Ahmadou, nascido em setembro. “Disseram que nunca tinham visto esse documento. Enviei um link que prova que vale em todo o território nacional, voltei e me disseram que estava expirado”, conta. Devido à interrupção dos serviços, a PF considera os documentos vencidos durante a pandemia válidos até março de 2022, mas Ibrahima quis garantir e foi até São Paulo renovar o seu. “Aí pediram no cartório que eu levasse duas testemunhas. Eu levei. Só assim consegui, mas foi difícil.”
Nesse período, o bebê ficou sem tomar vacina –o SUS (Sistema Único de Saúde) não deveria negar atendimento, mas, na prática, casos assim acontecem. Após o registro, foram quatro picadas de uma vez.
Em Aracaju, no estado de Sergipe, uma funcionária da Cáritas Arquidiocesana fez contato com vários cartórios para ajudar duas famílias venezuelanas com bebês sem certidão. “Cada um tinha uma alegação diferente. É um desencontro de informações terrível”, afirma a agente pastoral Irenir Jesus. A organização acabou pagando pela tradução juramentada de um documento de um dos casais, exigida pelo registrador. Eles já haviam peregrinado por três cartórios. “Estava tão difícil que eles queriam desistir, mas eu não deixei.”
Questionada pela Folha, a Arpen (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais) diz que está trabalhando em um convênio com a Cáritas sobre o assunto e que se preocupa com a segurança jurídica nos casos das famílias que não trazem nenhum documento de seu país de origem.
A Arpen afirma também que a correta identificação dos pais é importante para evitar “a chamada adoção à brasileira, em que um pai registra como seu o filho de outra pessoa, podendo a partir daí incorrer em crimes como tráfico e contrabando de pessoas, inclusive com venda de órgãos humanos”. Por outro lado, a nota da associação destaca o “direito essencial ao registro de nascimento”.
De acordo com a Arpen, a identificação civil “não consegue ser suprida adequadamente pelo protocolo de solicitação de refúgio, um documento de cunho declaratório, no qual a foto pode ser colada pelo próprio interessado e, mais importante, cuja confirmação não pode ser checada pelo registrador civil, que não tem acesso a esta base de dados da Polícia Federal”.
Pela lei brasileira, porém, o protocolo de refúgio é um “documento de identidade válido em todo território nacional” e seu titular “possui os mesmos direitos de qualquer outro estrangeiro em situação regular no Brasil e deve ser tratado sem discriminação de qualquer natureza”.
Expedido em um papel branco, o protocolo de fato costuma ser recusado por bancos e outros serviços, por desconhecimento. A PF lançou um novo modelo, uma espécie de carteirinha, mas mesmo o modelo antigo tem um código de verificação que permite que sua autenticidade seja checada em um portal do Ministério da Justiça –o endereço consta ao lado do código.
Para o defensor João Chaves, em muitos casos existe uma “xenofobia institucionalizada”, que coloca barreiras para dificultar o acesso do imigrante a direitos. “É evidente que os cartórios têm que ter a cautela necessária, mas essa cautela vem sendo utilizada para prejudicar o acesso a direitos. Os protocolos temporários são documentos válidos por lei. Não cabe ao cartório negar sua validade. Além disso, na maioria das vezes a pessoa também apresenta o passaporte e outros documentos de seu país de origem.”
Segundo Chaves, em caso de dúvida o cartório pode instaurar um procedimento de esclarecimento perante um juiz, mas isso raramente é feito. “A maioria dos casos atendidos pela DPU são de negativa pura e simples. Pedem para a pessoa voltar depois com um documento que não existe.”
Outra organização que vem acompanhando famílias com essa dificuldade é a OIM (Organização Internacional para as Migrações). “Antes era algo esporádico. Depois do fechamento das fronteiras na pandemia, passou a ser uma demanda expressiva”, diz Yssyssay Rodrigues, coordenadora de projetos da OIM, citando casos em Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro.
Ela cita como uma boa prática o que aconteceu no Rio Grande do Sul, onde as normas de registro civil foram alteradas no fim de 2020 para contemplar os casos dos imigrantes. “A norma anterior estava desatualizada. Era da época do Estatuto do Estrangeiro, da década de 1980, listava documentos que nem existem mais”, afirma o advogado Adriano Pistorelo, do Centro de Atendimento ao Migrante (CAM) de Caxias do Sul.
Foi Pistorelo quem enviou um ofício ao Tribunal de Justiça estadual solicitando a atualização das normas após receber pedidos de ajuda de imigrantes que não conseguiram registrar nascimentos e casamentos.
“Foram mais de 30 relatos, principalmente em cidades bem pequenas. Eram casos de apatridia [ausência de nacionalidade] de crianças nascidas no Brasil, o que é absurdo. Eu conversava com os cartórios, alguns entendiam, outros não. Então vimos que precisávamos de uma solução geral. Depois da alteração [nas normas], nunca mais tivemos problema.”